domingo, 16 de abril de 2017

À Dimanche, Mamie.

No outro dia, disse-vos que guardei a roupa de inverno e tirei a de verão. Uma tarefa fácil, pelo menos quando comparada a arrumar outros armários. Vasculhei a minha caixa das recordações e desde esse dia que ando a (re)organizar as emoções.

Não conheci os meus avós maternos, o meu pai, ele próprio, não se lembra do pai dele e restava-nos a sua mãe, a quem não conheci os encantos, apesar de lhe conhecer o rosto e o sorriso, porque ficaram perdidos numa história que não me conseguia contar, deitada anos a fio na sua cama, sem se mexer.

O que eu não sabia, quando estava na barriga da minha mãe, é que os meus pais tinham ganho uma mãe adotiva e eu, por consequência, uma avó. A Mamie estava lá, nos meus primeiros batimentos cardíacos, à espera que, também eu, a adotasse como avó. Não precisámos de analisar critérios e condições, os amores à primeira vista acontecem sem rasto de demora.

O amor supera a condição genética e as nossas vivências tornam-se o nosso verdadeiro ADN. São elas que definem o que somos e, da Mamie, herdei muitas coisas. Gosto de aproveitar a vida, de meter o pé na estrada e provar sítios diferentes, de letras, para as ler ou para as escrever, sejam em português ou em francês.

Gosto tanto dos sabonetes que me oferecia que agora faço os meus, enquanto me lembro dos cheiros que provávamos juntas nas férias na Côte d'Azur. A lavanda, as amêijoas no Catamaran, enquanto ela se deliciava com um Rosé, quase tanto como quando visitava o Porto. Como uma avó verdadeira, não teve coragem de me deixar no infantário a primeira vez e voltei com ela para casa. Também foi ela que me foi comprar uma chupeta nova, depois de eu ter deitado a minha ao lixo e me ter arrependido cinco segundos depois. Era ela que do alto do 16º andar, aquele 16º andar que não esqueço, me acenava para desejar um bom dia, quando o meu pai me levava pela mão à escola primária e foi ela que, a par de me escrever duas vezes por semana, nunca deixou de me ligar todos os domingos de manhã, desde que vim para Portugal, com 8 anos.

Vi-a em dois mil e nove e em 2010 pediu-me que lá voltasse. Voltei, de facto. Fui de carro com tal pressa que apanhei uma multa de velocidade, depois de, preocupada por não receber os telefonemas do domingo há 15 dias, finalmente conseguir saber que estava no Hospital. Tinha caído inconsciente em casa, sozinha e estava no hospital há 10 dias. Na última carta, dizia que contava comigo este verão. se ainda não estivesse morta.

Depois da recomendação da enfermeira para entrar com cuidado, pois estaria diferente, enchi-me de coragem e entrei tão rápido como saí. Falei com a médica que me disse que ela estava consciente, mas não sabia dizer em que estado de consciência, já que não falava, nem mexia. Que o pior aconteceria, só não sabiam se duraria um dia ou um mês.

Voltei a entrar. Sem a encarar, olhei para a janela até me lembrar que se falarmos ao coração das pessoas, elas ouvem, mesmo que não consigam falar connosco e fui ter com ela, pedi-lhe que me perdoasse, por não ter vindo antes, por, naquele verão, não termos cantado "só mais uma" música engraçada antes de dormir. Por não termos rido à gargalhada ao concluir que não conseguimos deixar de cantar o reportório musical inteiro. Por não termos conseguido parar de rir disso e ir dormir.

Era final da manhã. Dei-lhe a mão enquanto lhe disse que a amava. Ela abriu os olhos, olhou-me fixamente e deixou cair uma lágrima. Os mesmos olhos que fechou naquela noite, dia 9 do 9. Estava mesmo a contar comigo, antes que o verão terminasse e antes que morresse. Esperou por mim e ainda que tenha sido no final do verão, ainda que tenha sido ao lado daquela cama de hospital, contou comigo.

Elisabeth Kubler-Ross definiu 5 fases do luto. Era uma Psiquiatra Suiça e chamou à última fase "aceitação". Se fosse Portuguesa, ter-lhe-ia chamado "Saudade".
















2 comentários:

  1. A tua imensa humanidade em todo o seu esplendor!Tens a delicada ousadia de revelar as emoções que por norma ou cobardia escondemos no fundo da pele,nesse tapete da alma onde julgamos repousar as mágoas.Mas as grandes emoções não são nossa pertença,expandem-se como o universo,uma corrente que não podemos deter.Doce maré que nos rega,fertiliza e comove!

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  2. Emocionada com a partilha destas memórias e vivências que contribuíram para que hoje sejas Tu. Assim. Simples Autêntica Linda

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