sexta-feira, 28 de julho de 2017

Marília

A Marília nasceu no dia 30 de Setembro de 1919, às três horas. O inicio dos anos loucos são também o inicio da vida da minha avó. Nasceu em casa, na rua do Bonfim, mais precisamente no n° 252. Veio do ventre de uma Rita e da relação dela com um Alfredo, que viviam juntos nessa morada e não sabemos se casaram depois. Naquele dia, pelo menos, não eram casados.

Também não sabemos o que aconteceu a seguir. Porquê que a Marília saiu do coração do Porto para ir viver para a Areosa, porquê que os filhos dela não conheceram a avó, mas dois deles conheceram ainda os bisavós. Porquê que a Marília cortou relações com o Pai ou ele com ela.

O meu pai acha que a Rita morreu cedo. Talvez o Alfredo a tenha ido entregar aos avós maternos e não aos seus pais, já que ele próprio era órfão de mãe desde a tenra infância. Talvez a Rita tenha adoecido e entregue a Marília aos seus pais antes de partir. Talvez exista outra explicação, mas é quase certo que tenha vivido com os avós, porque eram eles que moravam na Areosa e a Marília chegou a trabalhar como costureira, oficio que terá aprendido junto da sua avó Camilla, costureira ou do seu avô, Adelino, alfaiate.

Sei que vos estou a falar da Marília, mas como falar dela sem falar dos que lhe antecederam? Seria como falar de mim, sem falar nela. Não sabemos o que a afastou do pai, mas sabemos quanta vontade tinha de se reaproximar dele. Talvez a vontade dela se tenha juntado à minha e junto com a vontade dos meus primos, que também são netos dela e a da nossa prima do Brasil, afastada, mas tão proxima...nos ajude a descobrir ainda mais pormenores sobre a nossa história.

Nesta fotografia sentada junto do meu avô, esboça o sorriso mais bonito que já vi numa mulher. O que lhe acontece a seguir parece castigo por uma mulher não ter direito de sorrir assim.

No final, era ela que castigava o destino. Mesmo depois do meu avô morrer tuberculoso aos 28 e se sucederem os desamores e desencantos, que culminaram numa incapacidade de falar e, pouco a pouco, de se movimentar até ficar presa a uma cama, mesmo assim, deixava desabrochar um sorriso no rosto, tão genuíno, que poderia bem ser inocente. Mas a vida já não tinha surpresas para ela.

Viveu a pobreza, a miséria, a orfandade, a doença, o luto, a maternidade, a solidão e a impotência para criar os filhos como tenho a certeza que desejava.

Mesmo assim, sorria sempre que nos via, olhava para o meu primo Pedro, bebé e segurava-o com a força de um só braço, mas da alma toda. Uma alma sensível, dotada para as artes, a poesia, a escrita, o teatro... E...para mim, a brincar com ele no chão, como quem observa a vida, sem lhe cobrar e reconhecendo-lhe ainda as maravilhas.

Teve oito filhos, três dos quais viu morrer crianças. Três amores, os três breves e sem final feliz. Três ataques, três dias seguidos, à mesma hora.

"Com um lado do corpo paralisado, segurava as batatas com o braço imóvel e descacascava-as só com uma mão, para preparar o almoço do Adérito, o filho mais novo". - conta-me o meu pai, num relato que retrata uma imagem carregada de uma força que só pode vir do amor.

Agora, já sei porque os filhos dela gostam tanto de brincar. Eles saborearam a pobreza no seu estado mais cru, viveram desencantos de uma vida difícil e têm sempre uma piada para dizer. Quase sempre se trata de um humor non-sense, mas quando penso na história deles, não há nada que não faça sentido nisto.

Percebo agora, que aprenderam com a doce Marília a mandar o destino às favas e a rir para ele. Deram-lhe eles a volta, construíram famílias, envolveram-se ativamente na sociedade e na construção de quem são. Fizeram-se à vida, descomplicados e leves, porque, também para eles, as surpresas que pudessem vir já só poderiam ser boas, comparadas a tudo que já conheciam.

A eles, conheço-lhes o sorriso, a boa disposição, o sentido de humor e dela, recordo-me também do sorriso que se desenhava no seu rosto a que se seguia a risada. O som da risada que nunca vou esquecer e consigo ouvir agora, na minha cabeça.

Podes sorrir, avó, que hoje...por teres existido, te continuamos a todos ainda mais, em cada respirar. Que hoje, graças a ti, a beleza do teu sorriso se continua no da Jasmim, que até me faz lembrar o teu, quando brinca com os primos, a quem também corres no sangue.











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